Meu caro Rui Vitória: Como venho dizendo, sempre que me refiro aos meus antigos alunos: o meu Amigo nada me deve, no que ao futebol diz respeito. Nas minhas aulas, nunca falei de microciclos de treino, nem nunca realcei qualquer modelo de jogo ou o modo de treiná-lo. Nestes assuntos, o Rui Vitória é o Mestre e eu o discípulo. Não passo de um velho espectador do futebol e um estudioso insaciável do desporto e sua circunstância.
E porque sou um espectador e um estudioso (estou velho, mas procuro não envelhecer, nem na prática, nem na teoria) não escondo que o Rui, para além de conhecedor dos mínimos segredos do seu ofício, como o revela no livro de que é autor, A Arte da Guerra para Treinadores (Topbooks, Lisboa, 2014) tem um comportamento que não posso deixar de aplaudir. E não o faço tão-só pelos impulsos das “razões do coração” (servindo-me das palavras de Pascal) mas porque a ética é “conditio sine qua non” de liderança. Aliás, o seu livro assim o confirma: “Os valores mais importantes que devem reger a carreira de qualquer treinador são, acima de tudo, valores humanos.
Qualquer treinador que comande uma equipa deve pensar que, ao tratar os seus jogadores, está a lidar, antes de mais, com seres humanos. Pessoas únicas, com características diferentes uma das outras. Esta noção de respeito pelo próximo, de educação e de humildade deve estar sempre presente. Não estou a dizer que um treinador tenha de ser um santo, mas acredito que devemos ser bem formados, acima de tudo, para sermos bons formadores” (p. 19). Palavras estas que, repetidas aos jogadores, se transformam em palavras de confiança, de exortação, de coragem, de estímulo à transcendência.
Volto ao que o meu Amigo escreveu: “os valores mais importantes que devem reger a carreira de qualquer treinador são, acima de tudo, valores humanos”. E “vemos, ouvimos e lemos” nós tanta gente a comentar o futebol, com o pensamento circular da tática e dos pretensos erros dos árbitros, mostrando desconhecer que o mais importante, na preparação de uma equipa de futebol, são... os valores humanos!
Sim, eu também sei que o futebol é essencialmente tático. Só que a tática não é tudo, nem no meu modesto entender (e não estou só) o mais importante. O mais importante, diz o Rui Vitória que destas coisas sabe mais do que eu – o mais importante são os valores humanos! E porquê? Por esta razão muito simples: não há jogos, há pessoas que jogam! Ou seja, o ser humano é anterior aos jogos e o seu fundamento! Quem joga o jogo no jogo é uma pessoa. Quem não treina a pessoa não treina a tática. Como há 40 anos bem medidos, que venho adiantando uma determinada tese, por aqui me fico.
Se me permite, relembro o que Vítor Serpa escreveu, com o talento que faz dele um grande jornalista: “O Benfica garantiu ontem em S. Petersburgo, muito mais do que uma importante presença nos quartos de final da Champions. Conquistou, para o futuro próximo do futebol português, a manutenção de dois lugares de acesso direto, na época de 2017/2018; conquistou um renovado respeito internacional pelo nome do clube histórico; conquistou ainda um recorde de receitas na prova, já muito perto dos 30 milhões de euros; e, por fim, e não menos significativo, conquistou o legítimo orgulho em si próprio e nesta equipa que Vitória transformou em ganhadora” (A Bola, 2016/3/10).
Por seu turno, o Dr. Rui Gomes da Silva, com a sua galhardia sentimental de um ardente benfiquismo, escreveu no mesmo jornal: “São Petersburgo mostou a dimensão europeia do Benfica. Ao sucesso na Champions iremos por certo buscar forças, para todas as provas em que continuamos envolvidos. Sem nos deslumbrarmos, sempre de pés bem assentes no chão, com humildade. À Benfica”. A propósito do Dr. Rui Gomes da Silva, sempre aquecido ao fogo de um franco e genuíno polemista, está a nascer um estudioso do futebol, com um rigor e uma seriedade que me apraz registar...
No célebre Verdade e Método, Hans-Georg Gadamer esclarece: ”o jogar só cumpre a finalidade que lhe é própria, quando aquele que joga entra no jogo”. E, porque aquele que joga é o mais complexo de todos os seres que se conhecem, tudo é sistema no treino. “Tudo está interligado, mesmo nos momentos teoricamente mais simples, como o aquecimento, que tende a ser visto como uma mera preparação para o treino. Já não faz sentido ver as coisas assim. Desde o momento do aquecimento que os jogadores estão a treinar de forma estrutural.
Depois, vamos intensificando ou introduzindo complexidade no treino, à medida que avançamos. Há sempre uma interligação, seguindo um sentido lógico, de progressão, não são fases estanques, que se sucedem abruptamente. O treino deve ser uma transição sistémica, mais do que uma sucessão de etapas, sem relação entre si” (Rui Vitória, A Arte da Guerra para Treinadores, p.72). O livro que mais me ocupa atualmente intitula-se A Biologia da Crença (Sinais de Fogo, Lisboa, 2015). É da autoria de Bruce H. Lipton, professor de biologia celular em várias universidades norte-americanas. Foi-me oferecido por um amigo querido: o Prof. José Neto. Neste livro, colhi o seguinte: “A ciência da epigenética, que significa literalmente “controle sobre os genes”, altera profundamente o nosso entendimento de como a vida é controlada (…). Na última década, a investigação nesta área estabeleceu que os diagramas de ADN, passados através dos genes, não eram definidos em concreto à nascença. Os genes não são o destino! As influências ambientais, incluindo a natrição, o estresse, e as emoções podem modificar esses genes, sem alterar o seu diagrama básico”.
Se assim é, como negar, meu caro Rui Vitória, que o seu humanismo (e o seu saber especializado do futebol, como é lógico) têm um contributo inapagável, no desempenho da equipa de futebol do Benfica? O Lindelof, o Renato Sanches, o Gonçalo Guedes(e cito só os mais jovens, os mais inexperientes) praticam a altíssima competição desportiva agarrados a princípios e ideais que os fazem integralmente atletas, porque antes os fizeram integralmente humanos!
Em todo o atleta, como em todo o ser humano, há o inato e o adquirido. Segundo a epigenética, o adquirido pode transformar, e muito, o inato. Portanto, o inato dos jogadores do Benfica, em contacto com o Rui Vitória e a sua equipa técnica e os dirigentes do Clube e o BenficaLab, etc., etc., ou seja, o adquirido, que lhes é dado fruir, transforma-os na equipa que vimos em S. Petersburgo. Está a fazer-se história, hoje, no S.L.Benfica. Um abraço fraterno do seu Manuel Sérgio
in
A Bola